quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Monografia da Murtosa, vol. 4 (2021)


 

No âmbito das comemorações do 29 de Outubro, aniversário da criação do concelho da Murtosa, promovidas pela Câmara Municipal da Murtosa, foi apresentado o 4.º volume da "Monografia da Murtosa", de que é autor Marco Pereira. A apresentação do livro teve lugar no recentemente renovado CRM (Centro Recreativo da Murtosa) - Oficina de Dança e Artes Criativas, pelas 10h00. Ao ritmo de um volume por ano, sempre apresentado no dia 29 de Outubro, a "Monografia da Murtosa" pretende estudar o concelho nas suas variadas vertentes, sempre na perspectiva histórica. Este ano o tema abordado é o da Idade Média, conforme o sumário abaixo, mas referem-se também alguns aspectos sobre a Idade Moderna, fazendo a ligação com a actualidade.

ORIGEM HISTÓRICA (IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA)

Os primeiros testemunhos da presença humana, na área do atual concelho da Murtosa, encontram-se apenas gravados na toponímia: duas mamôas (Mama Parda e Mamoa da Garça), dois nomes de possível origem árabe (Gelfa e Muranzel) e dois nomes de lugar de origem germânica, da época das invasões bárbaras (Romariz e Arrufo).

Encontram-se documentados os nomes dos principais núcleos desde o século XIII: Gelfa (1283), Murtosa (1286), Pardelhas (1287) e Bunheiro (1372). Diferencia-se em vários aspetos a Idade Média da Idade Moderna, já se distinguindo naquela a Terra Marinhoa. Naquele período destacam-se temas como a Peste Negra (1348), uma demografia escassa e com razoável mobilidade demográfica, a exploração dos populares e um caso de participação no desastre de Tânger (1437).

Eram as instituições monásticas que dominavam o território, sendo as principais o Mosteiro de Arouca e o Mosteiro de Vila Cova de Sandim (Gaia), este mais tarde agregado ao Mosteiro de São Bento de Ave-Maria, no Porto.

As terras de Antuã/Estarreja pertenciam ao Mosteiro de Arouca desde 1257 (incluíam a freguesia do Bunheiro e metade da da Murtosa), até meados do século XIX, que dali recebia foros e oitavos. A outra metade da freguesia da Murtosa (lugares de Pardelhas e Ribeiro) foi do século XIII ao século XIX do Mosteiro de Vila Cova, depois São Bento de Ave-Maria. A Torreira era uma parte indiferenciada das dunas do litoral, a Gelfa, que pertencia a Cabanões (que depois se chamou Ovar) e onde se criava gado na Idade Média e na Idade Moderna.

A economia local baseava-se na agricultura, pecuária, salicultura e pesca. A cultura dominante do trigo na Idade Média deu lugar à do milho na Idade Moderna. A criação de gado na Gelfa nos dois períodos, que também se fez nas ilhas, incluiu desde cedo cavalos, vacas e porcos. As salinas constituíam uma importante atividade económica. Enfim a pesca, que se fazia na Ria na Idade Média, virou-se igualmente para o mar na Idade Moderna, quando as condições naturais a isso obrigaram.

O cruzamento de fontes genealógicas com outras pouco conhecidas pode fornecer abundante informação sobre quem eram e que terras possuíam antepassados que, no limite, viveram há 500 anos atrás.

“Monografia da Murtosa”, vol. 3, apresentada no dia 29 de Outubro de 2020



É o terceiro volume da “Monografia da Murtosa”, edição da Câmara Municipal da Murtosa e da qual é autor Marco Pereira. Uma colecção que vem sendo publicada ao ritmo de um livro por ano, sempre no dia 29 de Outubro, o aniversário da criação do concelho da Murtosa. O volume foi apresentado na quinta-feira, 29 de Outubro de 2020, às 10h15, na Oficina das Artes, Murtosa (antiga Escola de Pardelhas-Monte).

No livro publicado são focados dois temas: a História Eclesiástica e a Administração Pública. Na História Eclesiástica trata-se, entre outros assuntos, da demografia eclesiástica (estatísticas), criação das paróquias do concelho da Murtosa, residências paroquiais e salões paroquiais, Tribunal do Santo Ofício (Inquisição), Lei da Separação de 1911, associações, listas de bispos, párocos e sacerdotes naturais do concelho. Por sua vez, a Administração Pública dá atenção à criação do concelho da Murtosa e das suas freguesias, sedes do poder político, heráldica e listas de autarcas. Fazem ainda parte do tema da Administração Pública as fronteiras, normas locais, administração judicial, Registos e Notariado, Autoridade Tributária, segurança pública e os actos eleitorais. Sobre os actos eleitorais incluem-se tabelas e gráficos, dando conta dos resultados de todas as eleições, desde o 25 de Abril de 1974: Assembleia Constituinte, Referendos, Presidenciais, Legislativas, Europeias e Autárquicas.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Santo António de Estarreja


O mais popular dos santos populares portugueses, ao Santo António são dedicadas as seguintes capelas, nos concelhos de Estarreja e Murtosa:

1 – Em Avanca, no centro da freguesia, capela pública fundada em 1526, que serviu transitoriamente de igreja no século XVIII, enquanto esta se construiu;

2 – Em Beduído, a capela principal da sede do concelho, na Praça Francisco Barbosa, tendo igualmente existido outra particular com a mesma invocação no lugar de Beduído, no extremo norte da freguesia com o mesmo nome, que já se conhecia em 1732;

3- Em Canelas, que era em 1721 pública e a única capela da freguesia, sendo reconstruída em 1898 pelo Pe. Dr. António Domingues da Silva; há uma pequena capelinha particular ou alminhas com a mesma invocação na Quinta da Carvalha;

4 – Em Fermelã, pequeno templo particular, situado na Rua do Vale;

5 – Em Pardilhó, na Quinta do Rezende e por este inaugurada em 1937, de certo modo substituindo a capela com a mesma invovação, pública, que existiu no largo da igreja entre 1767 e 1926;

6 – Em Salreu, na EN109, particular e construída cerca de 1721; outra particular na Boavista, talvez de 1898;

7 – Em Veiros, alminhas no Canedo, particulares e construídas na década de 1970; é errada a invocação de Santo António por vezes atribuída ao Senhor da Ribeira, pois é seu verdadeiro titular Jesus Crucificado;

8 – No Bunheiro, particular, na Rua Prof. Ruela Ramos, onde este viveu (Quinta da Formiga);

9 – No Monte da Murtosa, a igreja paroquial, inaugurada em 1929, sendo antes titular da capela pública hoje dita de Santa Luzia, que já existia em 1758.

No caso concreto da capela de Santo António da Praça, isto é, a que existe na Praça Francisco Barbosa, centro histórico e político-administrativo do concelho de Estarreja, estamos perante uma reconstrução, que substituiu duas capelas mais antigas. A primeira situava-se aproximadamente onde estão os actuais Paços do Concelho. Os mordomos da confraria de Santo António da Praça peticionaram em 1733, ao bispo do Porto, a transferência desta capela pública para Norte ou Nordeste da actual. Com a justificação do seu estado degradado e para que os presos da cadeia pudessem assistir à missa. Juntou-se entretanto aos mordomos Mateus Afonso Soares, Desembargador e Corregedor do Cível da Casa da Relação do Porto, que ofereceu o terreno e suportou a maior parte dos custos da construção. Mas reservando para si alguns direitos, ainda que o templo continuasse considerado público. Colocaram-se uma pedra de armas e legenda, as imagens de São Mateus e de Santa Brígida, que ficaram honrando os nomes do Desembargador e sua esposa, senhores da Casa dos Morgados de Santo António da Praça, hoje Casa da Cultura, com acesso privilegiado à capela.

Estava esta segunda capela em ruínas, quando a Câmara Municipal de Estarreja, presidida pelo veirense Dr. João Carlos d’Assis Pereira de Melo, promoveu a construção da terceira e actual. Ficou concluída em 1881, como consta em inscrição colocada por cima da porta principal. A sua edificação é coeva à construção da praça a que hoje chamamos de Francisco Barbosa, realizada na década de 1870, mas afinal devida ao referido Dr. Pereira de Melo. Com o advento da república o Estado nacionalizou a capela, que ficou parcialmente destruída aquando da Monarquia do Norte (1919) e foi entregue à Paróquia em 1942 e novamente em 1961. Fizeram-se ali obras por ocasião das festas do 7.º centenário do Santo António, celebradas em Portugal em 1931, altura em foram colocados na fachada os dois painéis de azulejo da Fábrica do Outeiro (Águeda). As festas de Santo Anónio, que se deixaram de fazer, foram reativadas em 1957, sendo-lhe dedicada uma peça de teatro original no ano seguinte. Houve marchas luminosas, de organização popular, pela primeira vez em 1961, mas não se fez festa no ano seguinte.

Por deliberação da Câmara Municipal, datada de 21.12.1977, recaiu o feriado municipal sobre o dia de Santo António, 13 de Junho. Mereceu a capela um grande restauro entre 1990 e 1991, dando-lhe o seu aspecto actual, sendo a sagração solene do altar feita a 13.10.1991, pelo Bispo de Aveiro, D. António Marcelino. A autarquia promoveu em 1990 a Semana Cultural do Moliceiro, na altura do Santo António, que se realizou por 4 anos seguidos, com um primeiro mercado à moda antiga em 1991. A partir de 1994 os festejos passaram a ter um nome mais sugestivo, Festas de Santo António e do Concelho de Estarreja, e a sua organização foi conhecendo um progressivo investimento municipal.

In O Jornal de Estarreja, n.º 4882, 29.5.2020, p. 12

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Morreu José Bento, o nome maior da literatura estarrejense

(Palestra de José Bento, no Rotary Club de Estarreja, 1997)


Poeta e tradutor, José Bento de Almeida e Silva Nascimento nasceu em Pardilhó, em 17 de Novembro de 1932. O seu percurso literário divide-se pela poesia e sobretudo pela tradução de literatura em língua espanhola, da qual foi grande divulgador em Portugal. Aliás, segundo o poeta e tradutor espanhol Francisco Brines, a obra que José Bento realizou é «a mais completa de tradução do espanhol para qualquer língua». Profissionalmente foi alguns anos professor do Ensino Secundário e trabalhou para várias empresas, na sua área de formação, contabilidade, da qual publicou igualmente diversos livros. Morreu aos 86 anos de idade no dia 26 de Outubro de 2019, Sábado, no Hospital Amadora-Sintra, onde se encontrava internado. A notícia foi divulgada pelos principais órgãos de comunicação portugueses, tendo já merecido uma mensagem de pesar do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

De temperamento particularmente discreto, nunca procurou e por isso não conheceu notoriedade junto do grande público. Dele disse José Saramago que era «um homem discreto, tímido», avesso a aparições públicas. Contudo um dos grandes nomes das letras portuguesas, reconhecido pelas maiores autoridades na matéria, que lhe atribuíram vários dos principais prémios literários, tanto em Portugal como em Espanha, sendo inclusive distinguido pelo Presidente da República Portuguesa e pelo Rei de Espanha. Recebeu, entre outros, o Prémio de Tradução do Pen Clube Português (1985 e 2005; também o de Poesia em 1992), o Grande Prémio Internacional de Tradução Literária, da Associação Portuguesa de Tradutores (1986, 2005), a Medalha de Ouro de Mérito das Belas Artes (1991, concedida pelo Rei de Espanha), a Ordem do Infante D. Henrique (1992, agraciado pelo Presidente da República Mário Soares), o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus (1992), o Prémio de Tradução Paulo Quintela, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2002), o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2006 – 1.ª edição), o Prémio Luís Miguel Nava (2013) e o Prémio Cervantes, atribuído pelo governo espanhol, reconhecendo a sua actividade como tradutor. O Prémio Hispano-Luso de Tradução, da Junta da Extremadura e da Associação de Escritores Extremenhos (Espanha), recebeu em 2006 o nome de José Bento, em sua homenagem.

A sua obra de poesia encontra-se dispersa por revistas de poesia, desde a década de 1950, e em vários livros, entre os quais se destacam o “Silabário” (1992, reunindo a sua obra poética), “Um sossegado silêncio” (2002), “Alguns Motetos” (2003, organizado e prefaciado pelo agora Cardeal José Tolentino de Mendonça) e “Sítios” (2011). Principalmente conhecido como tradutor de inúmeras obras literárias da língua espanhola, incluindo-se três grandes “Antologias de Poesia Espanhola” (1985, 1993/1996, 2001) e “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha” (2005).

Embora residisse na área da Grande Lisboa, nunca esqueceu a terra natal, Pardilhó. Nasceu em 1932 na casa dos avós paternos, situada na Rua Maurício de Almeida, próxima da loja da Feliz. Muito jovem começou a mostrar talento literário, com os primeiros artigos publicados no jornal local O Concelho de Estarreja e escrevendo uma marcante peça de teatro de revista, de costumes regionais, intitulada “Padas de Pardilhó” (1950). Embora esta peça de teatro fosse um interessante retrato de época da freguesia, José Bento renegava-a como escrito imaturo da juventude e sublinhava ter sido escrita em co-autoria. No fim da vida afirmou várias vezes o desejo de vir a ser sepultado em Pardilhó, junto dos seus familiares.


In 
O Jornal de Estarreja, n.º 4868, 15.11.2019, p. 2

Mais de 60 pessoas foram mortas em Salreu há 210 anos, durante a segunda invasão francesa

(Pormenor do registo paroquial de óbitos de Salreu, 1809)


Os exércitos de Napoleão Bonaparte tentaram conquistar Portugal em três ocasiões distintas, há cerca de dois séculos. Durante a segunda invasão francesa, comandada pelo Marechal Soult, a cidade do Porto foi tomada pelo inimigo, servindo de capital das forças francesas entre 29.3.1809 e 12.5.1809. A ocupação do Norte do país estendeu-se para Sul até ao rio Vouga, ficando instalada em Albergaria-a-Nova uma divisão de cavalaria sob as ordens do General Franceschi.

No propósito de controlar qualquer manobra inimiga, leia-se das tropas inglesas e portuguesas, navegando na Ria de Aveiro, vários militares franceses utilizaram a posição da Senhora do Monte, em Salreu, como ponto de vigia da região. É provável que alguns franceses se tenham instalado durante este período nos limites de Salreu, na Quinta dos Menezes (Casa do Santo). Os mais diversos roubos e violências, característicos das épocas de guerra, praticaram-se nos actuais concelhos de Estarreja e Murtosa, fugindo a maioria da população para lugares distantes ou mantendo-se na ria dentro de barcos, aguardando o regresso da normalidade.

A presença do exército francês provocou igualmente a morte de dezenas de civis, principalmente nas freguesias de Salreu e Beduído. Na sua maioria os populares foram mortos a tiro, do que deixaram testemunho escrito os párocos da época, nos livros de registo paroquial de óbitos. Houve também casos de particular crueldade, do que foi exemplo uma menina de sete anos afogada e um homem com deficiência mental cortado aos bocados pelas espadas dos franceses. No final, apenas em Salreu morreram mais de 60 pessoas, quase todas da freguesia e no mesmo dia, 16 de Abril de 1809 (faz agora 210 anos). Uma boa parte destas vítimas deve ter sido sepultada numa vala comum, próxima da fonte do Picoto. Muitos salreenses de hoje encontrarão entre elas antepassados seus.

Entretanto o ataque do exército britânico e português acabou por ditar a retirada francesa de Albergaria, na manhã de 10 de Maio de 1809, colocando um ponto final na segunda invasão francesa, nos concelhos de Estarreja e Murtosa.

Todavia, este momento tem que ser contextualizado na Guerra Peninsular (1807-1813), período em que Portugal e Espanha combateram os exércitos de Napoleão e que entre nós ficou genericamente conhecido por “invasões francesas”. Da Guerra Peninsular chegaram aos nossos dias outras informações respeitantes aos concelhos de Estarreja e Murtosa: conhecem-se as contribuições para o esforço de guerra em 1808, em cavalos ou destinadas à sua compra, destacando-se a oferta do Prior de Salreu; e houve diversos militares portugueses, originários de ambos os concelhos, combatendo os franceses. Inclusive o Alferes Manuel Marques Pires, que vendo-se aprisionado pelo exército francês fez promessa de construir uma capela na sua terra, dedicada a Nossa Senhora, caso voltasse a conhecer a liberdade. Tendo salvo a sua vida, veio por isso a construir a capelinha particular de Nossa Senhora das Necessidades, em 1819, que ainda se encontra próxima da escola da Póvoa de Baixo.

In 
O Jornal de Estarreja, n.º 4854, 19.4.2019, p. 2

O navio Regal, naufragado na Torreira



 Um navio naufragado há quase um século na costa a norte da Torreira, que se encontrava enterrado pela areia da praia, foi recentemente colocado a descoberto pela força do mar. Depois do naufrágio e da cobertura natural pelas areias da costa, havia posteriormente ficado a descoberto temporariamente, por mais que uma ocasião, o que contribuiu para que não se perdesse completamente a memória da sua existência, ainda que muito vaga. Questionadas várias autoridades (Direcção Geral do Património Cultural, Capitania do Porto de Aveiro, Câmara Municipal da Murtosa), nenhuma possuia informações sobre a embarcação. Sabia apenas um habitante da Torreira dizer o que na infância o seu avô lhe contara, do navio “O Regalo” ali naufragado, como explica o Diário de Aveiro na sua edição de 22 de Fevereiro.

Como me foi perguntado se conhecia alguma informação que esclarecesse do que se tratava, pela sra. Presidente da Junta de Freguesia da Torreira e por uma equipa de reportagem da estação televisiva SIC, fui confirmar se tinha algum apontamento sobre o assunto. E tinha afinal, algumas referências de jornais locais com data de 1923 (duas notícias de O Jornal de Estarreja e sete notícias da efemera Revista da Torreira), que entretanto voltei a consultar os originais, para melhor perceber o que aconteceu. Estas notícias de jornais locais vieram a ser úteis para a reportagem que no dia 2 de Março passou no Jornal da Noite da SIC, cerca das 21h00, ficando esta muito enriquecida, uma vez que apenas se conhecia o mencionado testemunho de um habitante da Torreira. Como estive a reler as notícias dos jornais locais, da época do naufrágio, pareceu-me ter interesse redigir um pequeno artigo, explicando a origem da embarcação colocada novamente a descoberto pelo mar, e acompanhando com extractos das notícias da época. Pode-se também consultar alguma informação sobre a construção, vida e proprietários britânicos desta embarcação pesqueira, através do site https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?172711.

Em 4 de Julho de 1923 encalhou na costa a norte da Torreira o navio britânico a vapor “Regal”, que ficou aqui conhecido por “O Regalo”, afinal aportuguesamento do nome original inglês. Construído em 1906, para a Loyal Steam Fishing Co., de Grimsby (Inglaterra), e baptizado “Regal”, com a matrícula GY158. Entre Junho de 1915 e 1919 foi requesitado para o esforço de guerra (Primeira Grande Guerra), ficando nesse período ao serviço da Royal Navy como caça-minas, sendo após a guerra devolvido à empresa proprietária. Esta embarcação de pesca parece ter encalhado na Torreira devido ao denso nevoeiro e à quebra de parte do leme, deixando a tripulação desorientada. Conseguiram os tripulantes abandonar o navio “de pé enxuto”, sendo encaminhados para o Porto, onde foram apresentados ao cônsul britânico nesta cidade. Entretanto, o navio ficou inicialmente guardado por praças da Guarda Fiscal, sendo muito visitado por curiosos que acorreram ao local. Logo se iniciaram as tentativas para o desencalhar, todas sem sucesso. Primeiro, vieram ao local vários técnicos do Porto, para estudar a melhor solução. Depois, em 24 de Agosto de 1923, houve uma tentativa de desencalhar o “Regal” pelo rebocador “Luzitania”, vindo igualmente do Porto. Resolveu-se por fim retirar o navio encalhado aos bocados. Como nenhuma das tentativas conseguiu desencalhar o “Regal”, e as areias da costa acabaram por se encarregar de o sepultar, ficou este abandonado na Torreira, sendo redescoberto em raras ocasiões em que o mar lhe destapou as areias, como agora aconteceu.

Porque ajuda a satisfazer a curiosidade, de quem se interessar por este naufrágio na costa da Torreira, transcrevem-se de seguida as notícias da imprensa local na época.

«O encalhe do vapor «Regal»
Continua na mesma posição o vapor «Regal» que encalhou ao norte da Torreira.
Teem aqui vindo diversos representantes das casas do Porto afim de estudarem o meio de o salvarem, mas até à data em que escrevemos não lhe mecheram, continuando o navio guardado por praças da G. Fiscal.
Ao contrário do que dizia o nosso colega «Jornal de Estarreja», é falso terem havido roubos antes da chegada das autoridades, visto que, estas foram as primeiras a chegar ao navio.»
Revista da Torreira, n.º 14, 5.7.1923, p. 3

«O vapor naufragado na Torreira.
Tem sido muito visitado o navio inglez de pesca que há dias naufragou na costa da Torreira, ao norte, em frente da ermida do S. Paio.
Diz-se que o motivo do naufragio foram a cerração imensa e a quebra de parte do leme, causando a desorientação á tripulação, que devia ter passado horas de desanimo e de aflição.
O navio entrou pela costa, a ponto de poderem sahir os tripulantes a pè enxuto. Como ali não encontrassem ninguem que os entendesse, foi participado o caso á Capitania d’Aveiro e os naufragos seguiram para o Porto, onde foram apresentar-se ao seu consul.
O navio julga-se perdido, tendo-se salvo tudo que trazia a bordo.
Diz-se que antes de aparecer as auctoridades alguns objectos foram roubados.»
O Jornal de Estarreja, n.º 1851, 8.7.1923, pp. 2-3

[…] «foi certo ter havido pelo menos o roubo dum relogio dos salvados do navio naufragado na Torreira e que esse objecto foi estituido» […] – [desmentindo o desmentido da Revista da Torreira].
O Jornal de Estarreja, n.º 1854, 29.7.1923, p. 2

«O encalhe do vapor «Regal».
Principiaram os trabalhos para salvarem este navio que aqui encalhou.
Quando o nosso jornal circular já deve talvez estar salvo».
Revista da Torreira, n.º 15, 31.7.1923, p. 3

«O navio «Regal», encalhado a norte da Torreira, apezar de já ter andado de nado ainda não se tirou d’ali.
Aquilo até parece uma grande fita.»
Revista da Torreira, n.º 16, 16.8.1923, p. 1

«No dia 24 ultimo procurou-se mais uma vez salvar o navio Regal, encalhado, como noticiámos, ao norte da Torreira, tendo, para esse fim, vindo o rebocador «Luzitania», da praça do Porto, não tendo sido possivel salvá-lo não só devido á pouca força que empregaram como tambem ao estado de mar.»
Revista da Torreira, n.º 17, 1.9.1923, p. 3

«Após todas as tentativas para salvarem o vapor «Regal» encalhado ao norte da Torreira, resolveram tira-lo aos bocados, o que de resto è o que já há mito tinhamos previsto.»
Revista da Torreira, n.º 18, 16.9.1923, p. 3

«O tempo tem estado de abundante chuva e tem havido dias de grande vendaval. O mar embraveceu e se tão depressa não acudissem aos salvados do vapôr Regal que ha perto de um ano encalhou ao norte desta praia, a esta hora haveria ali grandes prejuizos.»
Revista da Torreira, n.º 25, 25.2.1924, p. 3

«O ultimo vendaval acoreou todos os salvados do vapor «Regal» que está encalhado ao norte da Torreira. As providencias tomadas pelos encarregados evitaram que ali se dessem grandes prejuizos.».
Revista da Torreira, n.º 26, 10.3.1924, p. 2


In 
Correio do Vouga, 6.3.2019, p. 9

Prof. Jaime Vilar, 20 anos depois

Foi em 16 de Fevereiro de 1999 que faleceu, faz agora 20 anos. Recordo-me que nessa altura vivia-se o Carvanal em Estarreja. Ficou-me gravada na memória a música que se ouvia, contrastando com o meu estado de espírito, quando saí do Hospital Visconde de Salreu, na última vez que o visitei.

O acaso de vivermos em épocas diferentes permitiu-nos apenas um breve cruzamento, ele no inverno da vida, eu na primavera da mesma. Convivemos assim apenas nos seus últimos anos de vida, meus de adolescência. Visitava-o em casa quase todas as tardes de sábado, ele já muito debilitado de saúde. Eu queria aprender e ele queria ensinar, coisas mais do domínio da etnologia que da história: costumes, tradições, histórias de vida, enfim cultura da Terra Marinhoa. Porque a saúde não lhe permitia movimentar a mão como antes, dificultando-lhe a escrita, ditava-me também textos para publicar no jornal de Pardilhó. Discutíamos aspectos da história de Pardilhó, dava-me conselhos de leitura e deu-me principalmente incentivo para continuar. Numa carta que ainda me conseguiu escrever, acompanhando um texto que queria publicar no jornal da terra, dizia: «Marco, emenda, corta, acrescenta, o que entenderes por melhor. É a escrever que se aprende a ser escritor. E tu parece ires pelo bom caminho.». Nunca fui escritor, os meus interesses afunilaram entretanto para o domínio da história, mas sempre guardei na memória a ideia, e é verdade, que se aprende a escrever escrevendo. Escritores há, e não são poucos, que renegaram os seus primeiros livros. É a prática que sempre faz com que nos aperfeiçoemos em qualquer saber.

A diferença de conhecimentos que nos separava era abissal. Eu começava a escrever uns artigos na imprensa local, pobrezinhos. Ele via em mim um rapazote que mostrava interesse pelas coisas da terra, com capacidade para se aperfeiçoar. Além de ser uma companhia frequente, no momento em que sentia o afastamento de muitos amigos (mantenho decorado, desde então, certo soneto de Camilo que me deu a conhecer), encontrou alguém novo, que podia no futuro continuar a dar atenção à nossa pequena pátria, num conhecimento que interessava a muito poucos.

Daquele tempo guardo alguns manuscritos, de correspondência pessoal que trocámos. Também algumas fotocópias de publicações cuja leitura me recomendava. Incluindo uma sua auto-biografia.

Com ele aprendi alguma coisa, numa fase muito incipiente do meu interesse pela história e cultura locais. Numa disciplina sem programa do Ministério da Educação, sem escola onde ir, sem horário escolar. Fui desta forma, talvez, o seu último aluno.

Marco Pereira
In O Jornal de Estarreja, n.º 4850, 22.2.2019, p. 2