Foi em 16 de Fevereiro de 1999 que faleceu, faz agora 20
anos. Recordo-me que nessa altura vivia-se o Carvanal em Estarreja. Ficou-me
gravada na memória a música que se ouvia, contrastando com o meu estado de
espírito, quando saí do Hospital Visconde de Salreu, na última vez que o
visitei.
O acaso de vivermos em épocas diferentes permitiu-nos apenas
um breve cruzamento, ele no inverno da vida, eu na primavera da mesma.
Convivemos assim apenas nos seus últimos anos de vida, meus de adolescência.
Visitava-o em casa quase todas as tardes de sábado, ele já muito debilitado de
saúde. Eu queria aprender e ele queria ensinar, coisas mais do domínio da
etnologia que da história: costumes, tradições, histórias de vida, enfim
cultura da Terra Marinhoa. Porque a saúde não lhe permitia movimentar a mão
como antes, dificultando-lhe a escrita, ditava-me também textos para publicar
no jornal de Pardilhó. Discutíamos aspectos da história de Pardilhó, dava-me
conselhos de leitura e deu-me principalmente incentivo para continuar. Numa
carta que ainda me conseguiu escrever, acompanhando um texto que queria
publicar no jornal da terra, dizia: «Marco,
emenda, corta, acrescenta, o que entenderes por melhor. É a escrever que se
aprende a ser escritor. E tu parece ires pelo bom caminho.». Nunca fui
escritor, os meus interesses afunilaram entretanto para o domínio da história,
mas sempre guardei na memória a ideia, e é verdade, que se aprende a escrever
escrevendo. Escritores há, e não são poucos, que renegaram os seus primeiros
livros. É a prática que sempre faz com que nos aperfeiçoemos em qualquer saber.
A diferença de conhecimentos que nos separava era abissal.
Eu começava a escrever uns artigos na imprensa local, pobrezinhos. Ele via em
mim um rapazote que mostrava interesse pelas coisas da terra, com capacidade
para se aperfeiçoar. Além de ser uma companhia frequente, no momento em que
sentia o afastamento de muitos amigos (mantenho decorado, desde então, certo
soneto de Camilo que me deu a conhecer), encontrou alguém novo, que podia no
futuro continuar a dar atenção à nossa pequena pátria, num conhecimento que
interessava a muito poucos.
Daquele tempo guardo alguns manuscritos, de correspondência
pessoal que trocámos. Também algumas fotocópias de publicações cuja leitura me
recomendava. Incluindo uma sua auto-biografia.
Com ele aprendi alguma coisa, numa fase muito incipiente do
meu interesse pela história e cultura locais. Numa disciplina sem programa do
Ministério da Educação, sem escola onde ir, sem horário escolar. Fui desta forma,
talvez, o seu último aluno.
Marco Pereira
In O Jornal de Estarreja, n.º 4850, 22.2.2019, p. 2
In O Jornal de Estarreja, n.º 4850, 22.2.2019, p. 2
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