segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Assalto ao Santa Maria - Camilo Mortágua recorda todos os momentos

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O Jornal de Estarreja – Passou a sua infância em Salreu. Que recordações guarda desta freguesia?

Camilo Mortágua – É verdade, vivi no Ribeiro da Ladeira, na casa do António Salsa, que era tio do meu pai. Recordo-me de ir nadar para o rio Antuã com outras crianças do meu tempo e de fazermos as tapagens no verão para o rio transbordar e alagar os campos. Na parte baixa do rio apanhávamos barbos, enguias e cortávamos lenha na margem para fazer as fogueiras de S. João. E lembro-me também de vários apelidos curiosos das famílias do lugar onde vivia. Enfim, as recordações são mais que muitas.

JE – Tinha aquando do assalto ao Santa Maria alguma simpatia ou actividade política? E depois disso?

CM – Para responder a essa pergunta tenho que contextualizar a minha situação. Emigrei para a Venezuela porque vivia-se em Portugal com necessidades, não havia perspectivas de vida. Foi em contacto com as pessoas daquele país comecei a tomar consciência política e até participei no derrube do ditador Peres Ximenes, em 1958.

JE – Como surgiu a oportunidade de participar no assalto ao paquete português e que razões o levaram a tomar parte da iniciativa?


CM – Logo depois do derrube do ditador venezuelano os portugueses anti-salazaristas começaram a organizar-se, e fundou-se em Caracas a Junta Patriótica Portuguesa, a convite da qual o Capitão Henrique Galvão, então exilado, veio para Caracas. Foi nessa altura que o conheci. A partir de então, encetando contactos com outros portugueses anti-salazaristas e espanhóis anti-franquistas, acabámos por fundar o DRIL, em 1959. É no quadro dessa organização que se começou a organizar a operação do Santa Maria.

Sabíamos que estando nós do outro lado do Atlântico não podíamos derrubar nenhuma das ditaduras ibéricas, e por isso já que não podíamos vir a Portugal ou a Espanha pensámos que uma parte de Portugal podia ir ao nosso encontro, e foi o que aconteceu com o Santa Maria.

JE – Em que medida o assalto marcou a sua vida posterior?

CM – Marcou totalmente. Foi a entrada na vida clandestina, que durou até ao 25 de abril. É claro que cheguei a vir a Portugal, mas sempre clandestinamente, e embora vivesse fora do país sabia que era observado pela polícia dos países onde estive.

Após o assalto ao Santa Maria passámos a viver no Brasil, até ao final de 1961. Em Novembro desse ano viajámos a Marrocos, onde assaltámos um avião da TAP, que veio distribuir a Portugal panfletos e propaganda para as eleições desse ano. De Marrocos voltámos para o Brasil, onde permaneci de 1961 a 1966. Passei então para França e ali comecei a organizar aquilo que veio a ser a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), a qual ainda em 1966 realizou um assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, pretendendo com isso angariar fundos para a luta contra a ditadura. De volta a França envolvi-me numa tentativa de assalto à Covilhã, onde pretendíamos contagiar os populares com o nosso espírito revolucionário, alastrando-se daí o mesmo espírito a todo o povo português. Foi em França que permaneci até ao 25 de Abril.

JE – Que memória guarda de Henrique Galvão, como homem e na sua acção durante o assalto?

CM – Era um homem como há poucos hoje: um misto de intelectual de grande porte e de homem de acção. Escreveu peças de teatro, romances, ... e ao mesmo tempo sentia-se bem era praticando caça grossa e em aventuras. Acho que era sobretudo um asceta, e além disso um homem com 65 anos que fazia um crol de 4 piscinas enquanto eu só fazia uma, e cuidava muito da alimentação.

Durante o período de preparação do assalto ao Santa Maria a cama dele era uma esteira em cima do chão. Era incapaz de reivindicar para si qualquer privilégio em relação aos homens com quem trabalhava, antes pelo contrário. Nesse sentido era o total oposto do General Humberto Delgado, que fazia por mostrar à distância ser General. Galvão, pelo contrário, era um Bon Vivant da Belle Epoque. É certo que Delgado era um homem corajoso para a acção, mas funcionava por impulsos, um pouco “meia bola e força”. Já Galvão pensava e preparava mais as suas acções.

Ao contrário do que por vezes se pensa o General Delgado só soube do assalto ao Santa Maria quando o paquete já havia sido tomado. Nós não tínhamos total confiança no seu bom senso, pelo que mantivemos sempre o receio dele não se saber controlar face à comunicação social.

JE – Como eram as relações entre o Capitão Henrique Galvão e o General Humberto Delgado?

CM – O Capitão Galvão chegou a dizer ao General Delgado que “você não pode ser general e cabo ao mesmo tempo” e “você é o presidente eleito, por isso tem legitimidade para comandar as tropas, mas sou eu que as dirijo”. Mas é claro que Galvão sabia que o prestígio internacional vinha para o comandante das tropas. Por outro lado o General Delgado também percebeu que não ia a lado nenhum se embora presidente eleito não actuasse, e daí o fundo da discórdia entre os dois.

Evidentemente na leitura política o General Delgado sabia que não se podia comparar com o Capitão Galvão. Enquanto este escrevia para as Nações Unidas e outras forças internacionais, noite e dia, o General Delgado não tinha perfil para isso. Teriam sido os dois homens absolutamente excepcionais se apesar das suas divergências tivessem cooperado um com o outro.

O que aguentou as boas relações durante algum tempo foi o sentimento de gratidão de Henrique Galvão. Foi ele que da prisão impulsionou a candidatura à Presidência da República de Humberto Delgado, pois este tinha sido o único oficial que tinha tido coragem de o visitar na prisão. Foi realmente isso que fez com que as boas relações durassem algum tempo, mas de facto tinham grandes diferenças na maneira de estar na vida.

Henrique Galvão esperava ser o homem dos americanos para a substituição do regime, nas várias ideias que defendia e na sua posição contra o comunismo. A única coisa em que se enganou foi em não viver o tempo suficiente para isso se concretizar.

JE – Como era o ambiente dentro do navio, entre os 24 companheiros e entre os passageiros e tripulantes?


CM – Perfeitamente normal. Por muito pouco lógico que isso pareça era um ambiente de festa, com bailes e música. Havia americanos a bordo que parecia ter-lhes saído o totoloto, pois começaram logo a vender fotografias à imprensa quando se estabeleceram relações com o exterior.

Nós éramos 24 mas tínhamos que dormir, de modo que não havia mais de doze em actividade de cada vez. Havia um grupo de chefias, cerca de oito homens, tínhamos períodos de descanso de quatro horas e mantínhamos constante rotação entre as nossas tarefas. O que manteve a situação constante não foram os 24 homens mas os rumores que fizemos passar dentro do navio: que tínhamos mais homens entre os passageiros, que havíamos embarcado uma caixa cheia de armas, etc.. E também teve um efeito de dissuasão o acidente inicial que resultou na morte de um homem.

Eu não convivi muito com os passageiros, pois fazia parte do grupo que controlava a casa das máquinas, o coração do barco. A maior parte dos que ali trabalhavam eram cabo-verdianos e receberam-me dizendo “até que enfim que é dia de festa”. Até passei a fazer as minhas refeições com eles, não tendo tido muito contacto com os passageiros.

JE – Encontrou-se com algum estarrejense dentro do navio?

CM – Não. Fiquei agora a saber pelo Jornal de Estarreja dos estarrejenses a bordo. De facto sempre admiti que houvesse muitos lá dentro, pois sabia haver daqui muitos emigrantes na Venezuela, mas era difícil saber quem eram os estarrejenses e depois encontrá-los no meio de quase mil pessoas.


HENRIQUE GALVÃO. (1895 – 1970). Oficial do Exército (Capitão), natural do Barreiro. “Foi um dos cadetes da revolução de Sidónio Pais” e depois “um dos mais entusiastas elementos da revolução de 28.V.1926” (Gr. Enc. Port. e Bras.). Escreveu diversos livros, sendo de destaque os relativos às colónias portuguesas e à caça nesses mesmos territórios («Da vida e da morte dos bichos», «Outras terras, outras gentes», etc.). Foi inspector superior da Administração Colonial, Governador de Huíla, director das Feiras de Amostras de Luanda e Lourenço-Marques, director da Exposição Colonial do Porto (1940), director da Emissora Nacional de Rádiodifusão, director da Exposição Colonial dos Centenários, realizador das Comemorações Centenárias de Guimarães e do Cortejo do Mundo Português, etc. Tinha o grande-oficialato das ordens de Cristo e espanhola da República, o oficialato de Avis e a comenda de Leopoldo II da Bélgica.

No final da década de 40 incompatibilizou-se com o Estado Novo, discordando do modo como eram governadas as colónias portuguesas, tendo manifestado a sua posição num polémico discurso feito na qualidade de deputado à Assembleia Nacional. Preso em 1952 e novamente em 1958, por razões políticas, escapou da prisão e exilou-se na Argentina. Planeou e dirigiu em 1961 o Assalto ao Santa Maria.

CAMILO TAVARES MORTÁGUA. Nasceu a 29.1.1934 em Ul (Oliveira de Azeméis), de onde era natural a sua mãe. Dos 2 aos 13 anos viveu em Salreu, terra da naturalidade de seu pai (família Mortágua).

Emigrou para a Venezuela e viveu depois em vários países, estando actualmente radicado no Alentejo. A 10 de Junho de 2005 foi-lhe atribuída a condecoração de Grande Oficial da Ordem da Liberdade, pelo Presidente da República, Jorge Sampaio. Percurso biográfico completo em http://camilomortagua.no sapo.pt/ e na entrevista desta página.

ESTARREJENSES A BORDO. Conforme já noticiámos, além dos 24 homens, com diferentes sensibilidades políticas, que tomaram de assalto o Santa Maria, encontravam-se no paquete diversos estarrejenses, que só por fatalidade do destino eram seus tripulantes ou passageiros naquele momento. Conseguimos identificar os seguintes, a acrescentar à lista que publicámos no jornal de 6.1.2006:

- Evangelina Silva (de Salreu, já entrevistada no último número do Jornal de Estarreja)

- Agostinho Jorge Oliveira Henriques (do Casal – Salreu)


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De notar ainda outras curiosidades. Foi tesoureiro da Junta Patriótica Portuguesa, na Venezuela, António Marques Tavares Brandão, vivo, de Salreu. Finalmente, quando o cadáver do homem morto durante o assalto chegou a Lisboa, foi condutor do carro funerário da Armada, que o transportou da igreja da Estrela ao cemitério dos Prazeres, Bernardino Godinho da Silva, natural de Salreu e ainda residente nesta freguesia.

In "O Jornal de Estarreja", n.º 4328, 27.1.2006, p. 7
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1 comentário:

  1. Há aqui um erro cronológico. Efectivamente, o assalto ao Banco de Portugal foi perpetrado em 17 de maio de 1967 e não em 1966, como diz Camilo Tavares Mortágua.

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