sexta-feira, 24 de abril de 2020

O navio Regal, naufragado na Torreira



 Um navio naufragado há quase um século na costa a norte da Torreira, que se encontrava enterrado pela areia da praia, foi recentemente colocado a descoberto pela força do mar. Depois do naufrágio e da cobertura natural pelas areias da costa, havia posteriormente ficado a descoberto temporariamente, por mais que uma ocasião, o que contribuiu para que não se perdesse completamente a memória da sua existência, ainda que muito vaga. Questionadas várias autoridades (Direcção Geral do Património Cultural, Capitania do Porto de Aveiro, Câmara Municipal da Murtosa), nenhuma possuia informações sobre a embarcação. Sabia apenas um habitante da Torreira dizer o que na infância o seu avô lhe contara, do navio “O Regalo” ali naufragado, como explica o Diário de Aveiro na sua edição de 22 de Fevereiro.

Como me foi perguntado se conhecia alguma informação que esclarecesse do que se tratava, pela sra. Presidente da Junta de Freguesia da Torreira e por uma equipa de reportagem da estação televisiva SIC, fui confirmar se tinha algum apontamento sobre o assunto. E tinha afinal, algumas referências de jornais locais com data de 1923 (duas notícias de O Jornal de Estarreja e sete notícias da efemera Revista da Torreira), que entretanto voltei a consultar os originais, para melhor perceber o que aconteceu. Estas notícias de jornais locais vieram a ser úteis para a reportagem que no dia 2 de Março passou no Jornal da Noite da SIC, cerca das 21h00, ficando esta muito enriquecida, uma vez que apenas se conhecia o mencionado testemunho de um habitante da Torreira. Como estive a reler as notícias dos jornais locais, da época do naufrágio, pareceu-me ter interesse redigir um pequeno artigo, explicando a origem da embarcação colocada novamente a descoberto pelo mar, e acompanhando com extractos das notícias da época. Pode-se também consultar alguma informação sobre a construção, vida e proprietários britânicos desta embarcação pesqueira, através do site https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?172711.

Em 4 de Julho de 1923 encalhou na costa a norte da Torreira o navio britânico a vapor “Regal”, que ficou aqui conhecido por “O Regalo”, afinal aportuguesamento do nome original inglês. Construído em 1906, para a Loyal Steam Fishing Co., de Grimsby (Inglaterra), e baptizado “Regal”, com a matrícula GY158. Entre Junho de 1915 e 1919 foi requesitado para o esforço de guerra (Primeira Grande Guerra), ficando nesse período ao serviço da Royal Navy como caça-minas, sendo após a guerra devolvido à empresa proprietária. Esta embarcação de pesca parece ter encalhado na Torreira devido ao denso nevoeiro e à quebra de parte do leme, deixando a tripulação desorientada. Conseguiram os tripulantes abandonar o navio “de pé enxuto”, sendo encaminhados para o Porto, onde foram apresentados ao cônsul britânico nesta cidade. Entretanto, o navio ficou inicialmente guardado por praças da Guarda Fiscal, sendo muito visitado por curiosos que acorreram ao local. Logo se iniciaram as tentativas para o desencalhar, todas sem sucesso. Primeiro, vieram ao local vários técnicos do Porto, para estudar a melhor solução. Depois, em 24 de Agosto de 1923, houve uma tentativa de desencalhar o “Regal” pelo rebocador “Luzitania”, vindo igualmente do Porto. Resolveu-se por fim retirar o navio encalhado aos bocados. Como nenhuma das tentativas conseguiu desencalhar o “Regal”, e as areias da costa acabaram por se encarregar de o sepultar, ficou este abandonado na Torreira, sendo redescoberto em raras ocasiões em que o mar lhe destapou as areias, como agora aconteceu.

Porque ajuda a satisfazer a curiosidade, de quem se interessar por este naufrágio na costa da Torreira, transcrevem-se de seguida as notícias da imprensa local na época.

«O encalhe do vapor «Regal»
Continua na mesma posição o vapor «Regal» que encalhou ao norte da Torreira.
Teem aqui vindo diversos representantes das casas do Porto afim de estudarem o meio de o salvarem, mas até à data em que escrevemos não lhe mecheram, continuando o navio guardado por praças da G. Fiscal.
Ao contrário do que dizia o nosso colega «Jornal de Estarreja», é falso terem havido roubos antes da chegada das autoridades, visto que, estas foram as primeiras a chegar ao navio.»
Revista da Torreira, n.º 14, 5.7.1923, p. 3

«O vapor naufragado na Torreira.
Tem sido muito visitado o navio inglez de pesca que há dias naufragou na costa da Torreira, ao norte, em frente da ermida do S. Paio.
Diz-se que o motivo do naufragio foram a cerração imensa e a quebra de parte do leme, causando a desorientação á tripulação, que devia ter passado horas de desanimo e de aflição.
O navio entrou pela costa, a ponto de poderem sahir os tripulantes a pè enxuto. Como ali não encontrassem ninguem que os entendesse, foi participado o caso á Capitania d’Aveiro e os naufragos seguiram para o Porto, onde foram apresentar-se ao seu consul.
O navio julga-se perdido, tendo-se salvo tudo que trazia a bordo.
Diz-se que antes de aparecer as auctoridades alguns objectos foram roubados.»
O Jornal de Estarreja, n.º 1851, 8.7.1923, pp. 2-3

[…] «foi certo ter havido pelo menos o roubo dum relogio dos salvados do navio naufragado na Torreira e que esse objecto foi estituido» […] – [desmentindo o desmentido da Revista da Torreira].
O Jornal de Estarreja, n.º 1854, 29.7.1923, p. 2

«O encalhe do vapor «Regal».
Principiaram os trabalhos para salvarem este navio que aqui encalhou.
Quando o nosso jornal circular já deve talvez estar salvo».
Revista da Torreira, n.º 15, 31.7.1923, p. 3

«O navio «Regal», encalhado a norte da Torreira, apezar de já ter andado de nado ainda não se tirou d’ali.
Aquilo até parece uma grande fita.»
Revista da Torreira, n.º 16, 16.8.1923, p. 1

«No dia 24 ultimo procurou-se mais uma vez salvar o navio Regal, encalhado, como noticiámos, ao norte da Torreira, tendo, para esse fim, vindo o rebocador «Luzitania», da praça do Porto, não tendo sido possivel salvá-lo não só devido á pouca força que empregaram como tambem ao estado de mar.»
Revista da Torreira, n.º 17, 1.9.1923, p. 3

«Após todas as tentativas para salvarem o vapor «Regal» encalhado ao norte da Torreira, resolveram tira-lo aos bocados, o que de resto è o que já há mito tinhamos previsto.»
Revista da Torreira, n.º 18, 16.9.1923, p. 3

«O tempo tem estado de abundante chuva e tem havido dias de grande vendaval. O mar embraveceu e se tão depressa não acudissem aos salvados do vapôr Regal que ha perto de um ano encalhou ao norte desta praia, a esta hora haveria ali grandes prejuizos.»
Revista da Torreira, n.º 25, 25.2.1924, p. 3

«O ultimo vendaval acoreou todos os salvados do vapor «Regal» que está encalhado ao norte da Torreira. As providencias tomadas pelos encarregados evitaram que ali se dessem grandes prejuizos.».
Revista da Torreira, n.º 26, 10.3.1924, p. 2


In 
Correio do Vouga, 6.3.2019, p. 9

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