Um navio naufragado há quase um século na costa a norte da
Torreira, que se encontrava enterrado pela areia da praia, foi recentemente
colocado a descoberto pela força do mar. Depois do naufrágio e da cobertura natural
pelas areias da costa, havia posteriormente ficado a descoberto temporariamente,
por mais que uma ocasião, o que contribuiu para que não se perdesse
completamente a memória da sua existência, ainda que muito vaga. Questionadas
várias autoridades (Direcção Geral do Património Cultural, Capitania do Porto
de Aveiro, Câmara Municipal da Murtosa), nenhuma possuia informações sobre a
embarcação. Sabia apenas um habitante da Torreira dizer o que na infância o seu
avô lhe contara, do navio “O Regalo” ali naufragado, como explica o Diário de Aveiro na sua edição de 22 de
Fevereiro.
Como me foi perguntado se conhecia alguma informação que
esclarecesse do que se tratava, pela sra. Presidente da Junta de Freguesia da
Torreira e por uma equipa de reportagem da estação televisiva SIC, fui confirmar
se tinha algum apontamento sobre o assunto. E tinha afinal, algumas referências
de jornais locais com data de 1923 (duas notícias de O Jornal de Estarreja e sete notícias da efemera Revista da Torreira), que entretanto voltei
a consultar os originais, para melhor perceber o que aconteceu. Estas notícias
de jornais locais vieram a ser úteis para a reportagem que no dia 2 de Março passou
no Jornal da Noite da SIC, cerca das
21h00, ficando esta muito enriquecida, uma vez que apenas se conhecia o
mencionado testemunho de um habitante da Torreira. Como estive a reler as
notícias dos jornais locais, da época do naufrágio, pareceu-me ter interesse
redigir um pequeno artigo, explicando a origem da embarcação colocada novamente
a descoberto pelo mar, e acompanhando com extractos das notícias da época.
Pode-se também consultar alguma informação sobre a construção, vida e
proprietários britânicos desta embarcação pesqueira, através do site https://www.wrecksite.eu/wreck.aspx?172711.
Em 4 de Julho de 1923 encalhou na costa a norte da Torreira
o navio britânico a vapor “Regal”, que ficou aqui conhecido por “O Regalo”,
afinal aportuguesamento do nome original inglês. Construído em 1906, para a Loyal Steam Fishing Co., de Grimsby
(Inglaterra), e baptizado “Regal”, com a matrícula GY158. Entre Junho de 1915 e
1919 foi requesitado para o esforço de guerra (Primeira Grande Guerra), ficando
nesse período ao serviço da Royal Navy
como caça-minas, sendo após a guerra devolvido à empresa proprietária. Esta
embarcação de pesca parece ter encalhado na Torreira devido ao denso nevoeiro e
à quebra de parte do leme, deixando a tripulação desorientada. Conseguiram os
tripulantes abandonar o navio “de pé enxuto”, sendo encaminhados para o Porto,
onde foram apresentados ao cônsul britânico nesta cidade. Entretanto, o navio
ficou inicialmente guardado por praças da Guarda Fiscal, sendo muito visitado
por curiosos que acorreram ao local. Logo se iniciaram as tentativas para o
desencalhar, todas sem sucesso. Primeiro, vieram ao local vários técnicos do
Porto, para estudar a melhor solução. Depois, em 24 de Agosto de 1923, houve
uma tentativa de desencalhar o “Regal” pelo rebocador “Luzitania”, vindo igualmente
do Porto. Resolveu-se por fim retirar o navio encalhado aos bocados. Como
nenhuma das tentativas conseguiu desencalhar o “Regal”, e as areias da costa
acabaram por se encarregar de o sepultar, ficou este abandonado na Torreira, sendo
redescoberto em raras ocasiões em que o mar lhe destapou as areias, como agora
aconteceu.
Porque ajuda a satisfazer a curiosidade, de quem se
interessar por este naufrágio na costa da Torreira, transcrevem-se de seguida
as notícias da imprensa local na época.
«O encalhe do vapor «Regal»
Continua na mesma posição o vapor «Regal» que encalhou ao norte da
Torreira.
Teem aqui vindo diversos representantes das casas do Porto afim de
estudarem o meio de o salvarem, mas até à data em que escrevemos não lhe
mecheram, continuando o navio guardado por praças da G. Fiscal.
Ao contrário do que dizia o nosso colega «Jornal de Estarreja», é falso
terem havido roubos antes da chegada das autoridades, visto que, estas foram as
primeiras a chegar ao navio.»
Revista da Torreira, n.º 14, 5.7.1923, p. 3
«O vapor naufragado na Torreira.
Tem sido muito visitado o navio inglez de pesca que há dias naufragou
na costa da Torreira, ao norte, em frente da ermida do S. Paio.
Diz-se que o motivo do naufragio foram a cerração imensa e a quebra de
parte do leme, causando a desorientação á tripulação, que devia ter passado
horas de desanimo e de aflição.
O navio entrou pela costa, a ponto de poderem sahir os tripulantes a pè
enxuto. Como ali não encontrassem ninguem que os entendesse, foi participado o
caso á Capitania d’Aveiro e os naufragos seguiram para o Porto, onde foram
apresentar-se ao seu consul.
O navio julga-se perdido, tendo-se salvo tudo que trazia a bordo.
Diz-se que antes de aparecer as auctoridades alguns objectos foram
roubados.»
O Jornal de Estarreja, n.º 1851, 8.7.1923, pp. 2-3
[…] «foi certo ter havido pelo menos o roubo dum relogio dos salvados do
navio naufragado na Torreira e que esse objecto foi estituido» […] – [desmentindo
o desmentido da Revista da Torreira].
O Jornal de Estarreja, n.º 1854, 29.7.1923, p. 2
«O encalhe do vapor «Regal».
Principiaram os trabalhos para salvarem este navio que aqui encalhou.
Quando o nosso jornal circular já deve talvez estar salvo».
Revista da Torreira, n.º 15, 31.7.1923, p. 3
«O navio «Regal», encalhado a norte da Torreira, apezar de já ter andado
de nado ainda não se tirou d’ali.
Aquilo até parece uma grande fita.»
Revista da Torreira, n.º 16, 16.8.1923, p. 1
«No dia 24 ultimo procurou-se mais uma vez salvar o navio Regal,
encalhado, como noticiámos, ao norte da Torreira, tendo, para esse fim, vindo o
rebocador «Luzitania», da praça do Porto, não tendo sido possivel salvá-lo não
só devido á pouca força que empregaram como tambem ao estado de mar.»
Revista da Torreira, n.º 17, 1.9.1923, p. 3
«Após todas as tentativas para salvarem o vapor «Regal» encalhado ao
norte da Torreira, resolveram tira-lo aos bocados, o que de resto è o que já há
mito tinhamos previsto.»
Revista da Torreira, n.º 18, 16.9.1923, p. 3
«O tempo tem estado de abundante chuva e tem havido dias de grande
vendaval. O mar embraveceu e se tão depressa não acudissem aos salvados do
vapôr Regal que ha perto de um ano encalhou ao norte desta praia, a esta
hora haveria ali grandes prejuizos.»
Revista da Torreira, n.º 25, 25.2.1924, p. 3
«O ultimo vendaval acoreou todos os salvados do vapor «Regal» que está
encalhado ao norte da Torreira. As providencias tomadas pelos encarregados
evitaram que ali se dessem grandes prejuizos.».
Revista da Torreira, n.º 26, 10.3.1924, p. 2
In
Correio do Vouga, 6.3.2019, p. 9
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