domingo, 26 de janeiro de 2014

Revolta em Salreu, contra a apreensão de embarcações (1916)

No dia 9 de Dezembro de 1916, sábado de tarde[1], deslocou-se ao esteiro de Salreu uma lancha com guardas da Capitania do Porto de Aveiro, «com o intuito de verificar se algumas bateiras aí ancoradas tinham o respectivo número de matrícula, afim de aplicar a multa aos donos daquelas que não tivessem cumprido essa formalidade»[2], rebocando as que estivessem sem numeração[3].

O povo foi-se aproximando dos guardas, trocando-se entre as duas partes palavras desagradáveis[4], e tocando o sino da igreja a rebate para reunir mais povo, conseguindo alguns populares desarmar os guardas, que foram espancados[5]. Dos 9 ou 10 guardas ali presentes[6] ficaram alguns gravemente feridos[7], sendo depois tratados no Hospital de Aveiro. Porque entretanto ocorreu uma forte chuvada, o povo dispersou, conseguindo os guardas recolher à sua lancha, onde ainda havia duas espingardas, com as quais fizeram fogo, ferindo gravemente um ou dois salreenses[8]. Recolheram depois a Aveiro os guardas na sua lancha, na qual tiveram de tapar com barro vários buracos, causados pelos disparos feitos pelos salreenses quando se apoderaram das armas[9].

Devido a estes acontecimentos acabariam por ser julgados 15 salreenses[10], dos quais 8 iam acusados de cabeças de motim e permaneceram presos em Aveiro até ao julgamento[11]. Esperava-se serem julgados em finais de Janeiro de 1917, no Tribunal Militar de Viseu[12], mas este declarou-se incompetente, remetendo os autos para o foro civil, no juízo criminal de Estarreja[13]. Acabou porém por determinar a Procuradoria Geral da República que o julgamento se fizesse no Tribunal Militar de Viseu[14], como de facto sucedeu, na segunda-feira 30 de Abril de 1917[15]. Foi advogado de defesa o estarrejense Dr. Guilherme Eugénio Souto Alves[16], que representou 13 dos arguidos, tendo os outros dois defensor oficioso[17]. Embora em alguns títulos da imprensa local constasse que foram todos absolvidos[18], parece que foram absolvidos 9, sendo 2 condenados por desobediência e 4 por resistência à autoridade, com penas entre 1 e 3 meses de prisão, contada na preventiva[19].

No rescaldo dos factos de 9 de Dezembro deslocaram-se a Salreu forças de cavalaria e infantaria, que não chegaram a ter qualquer intervenção por serenidade do povo[20]. Só meses depois, nos finais de Agosto de 1917, regressaram à freguesia guardas da Capitania do Porto de Aveiro, cerca de 80 e com certo aparato bélico. Não houve interacção com o povo e a ordem imperou[21]. Manteve-se o azedume popular dos povos ribeirinhos para com os guardas da Capitania, pelas normas que defendiam e pelo excesso de zelo na sua aplicação. Situação que se agravava com a crise decorrente da participação portuguesa na Primeira Grande Guerra. Persistiu o rigor e firmeza da fiscalização das diversas transgressões, como as redes dos pescadores apreendidas e queimadas[22], os apanhados em flagrante delito que tentavam fugir mortos a tiro[23], e os que não fugiam julgados e condenados a pesadas multas ou cadeia[24]. Sofreram principalmente as restrições ao desempenho do seu ganha-pão os murtoseiros, pelo que não deixou saudades a passagem de Jaime Afreixo pelo lugar de Capitão do Porto de Aveiro, que ocupou entre Julho de 1914 e Janeiro de 1918[25].


[1] TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[2] O Concelho de Estarreja, 16.12.1916, pp. 1-2.
[3] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2.
[4] O Concelho de Estarreja, 16.12.1916, pp. 1-2.
[5] O Concelho de Estarreja, 16.12.1916, pp. 1-2; O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[6] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[7] O Concelho de Estarreja, 16.12.1916, pp. 1-2; O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[8] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2 (ver também números seguintes); TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19 (um); O Concelho de Estarreja, 16.12.1916, pp. 1-2 (dois).
[9] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[10] O Povo da Murtosa, n.º 603, 5.5.1917, p. 2; O Jornal e Estarreja, n.º 1544, 6.5.1917, p. 1.
[11] Campeão das Províncias, 20.1.1917, p. 2; CP, 3.2.1917, p. 2; O Povo da Murtosa, n.º 589, 27.1.1917, p. 1; O Jornal e Estarreja, n.º 1544, 6.5.1917, p. 1.
[12] Campeão das Províncias, 20.1.1917, p. 2.
[13] Campeão das Províncias, 3.2.1917, p. 2; O Povo da Murtosa, n.º 589, 27.1.1917, p. 1.
[14] O Povo da Murtosa, n.º 600, 14.4.1917, p. 2.
[15] O Jornal e Estarreja, n.º 1544, 6.5.1917, p. 1.
[16] Campeão das Províncias, 20.1.1917, p. 2; O Jornal de Estarreja, n.º 1542, 22.4.1917, p. 2; JE, n.º 1544, 6.5.1917, p. 1; O Concelho de Estarreja, n.º 810, 5.5.1917, p. 1; O Povo da Murtosa, n.º 603, 5.5.1917, p. 2.
[17] O Povo da Murtosa, n.º 603, 5.5.1917, p. 2.
[18] O Jornal e Estarreja, n.º 1544, 6.5.1917, p. 1; O Concelho de Estarreja, n.º 810, 5.5.1917, p. 1.
[19] O Povo da Murtosa, n.º 603, 5.5.1917, p. 2.
[20] Campeão das Províncias, 16.12.1916, p. 1.
[21] Ecos do Antuã, n.º 2, 8.9.1917, pp. 1-2.
[22] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19.
[23] O Povo da Murtosa, n.º 586, 16.12.1916, pp. 1-2; TAVARES Afonso e Cunha, José, “Notas Marinhoas - CLXVII”, O Concelho da Murtosa, n.º 1901, 30.9.1987, p. 19; TAVARES Afonso e Cunha, José, Notas Marinhoas, V, 1995, p. 165.
[24] TAVARES Afonso e Cunha, José, Notas Marinhoas, V, 1995, p. 166.
[25] TAVARES Afonso e Cunha, José, Notas Marinhoas, V, 1995, p. 165. Não nos foi possível consultar, a respeito deste episódio, o Correio de Aveiro.


In “Revoltas populares em Estarreja e Murtosa”, Terras de Antuã, Câmara Municipal de Estarreja, VII, 2013, pp. 81-94.

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