segunda-feira, 1 de julho de 2013

A Terra Marinhoa na Idade Média - Freguesia de Veiros

A primeira vez que se menciona o nome de uma localidade da Terra Marinhoa diz respeito a Veiros e data de 1210. Outros documentos mais antigos terão talvez existido, mas que se saiba nenhum deles chegou aos nossos dias. Por isso só no início do século XIII começamos a ter informações escritas da região marinhoa, muito depois da generalidade das freguesias do concelho de Estarreja[1]. Veiros surge numa situação privilegiada, não só por aparecer em primeiro lugar mas por ter um pergaminho só seu[2], e que lhe atribui uma posição de certo destaque. Vertido para o português actual o que se escreveu sobre Veiros foi o seguinte:

«Afonso, por graça de Deus rei de Portugal e conde de Bolonha, saúda todos os que virem a presente carta. Sabei que eu vi a carta do meu avô, rei D. Sancho, autenticada com o seu selo, a qual é esta:

Eu Sancho, por graça de Deus rei dos portugueses, quero que seja do conhecimento de todos a quantos esta escritura chegue, que eu dou a foro aos homens de Veiros que me dêem a quarta parte de quanto produzirem e, da eirádega, um sesteiro e um almude de trigo, e um capão, e um cabrito médio, e uma terça de mbro (?). E concedo-lhes que nunca façam outro foro nem sejam multados. Esta carta foi feita na Feira, da Terra de Santa Maria, em meados de Junho da Era de 1248 [ano de Cristo de 1210]. E mando que lhes recebam o meu pão na eira.

E eu supradito Afonso, por graça de Deus rei de Portugal e Conde de Bolonha, concedo aos ditos homens de Veiros o mesmo foro que o meu avô lhes deu pela sobredita carta. E mando ao juiz de Veiros que obrigue os mesmos homens de Veiros ao mesmo foro estabelecido pela sobredita carta, e que não permita que deixem de pagar nenhuma parte. Dado em Figueiredo, por V. Didaci sobrejuiz, no primeiro dia de Agosto da Era de 1288 [ano de Cristo de 1250].»[3].

Na verdade não se trata de um documento mas sim de um par deles. Isto é, D. Afonso III, Conde de Bolonha e Rei de Portugal, reconheceu como válido, em 1250, outro diploma outorgado pelo seu avô, D. Sancho I, em 1210, o qual é reproduzido juntamente com a sua confirmação. O primeiro foi dado na Feira, e o segundo em Figueiredo.

Não se conhece nenhum texto mais antigo onde conste o nome de Veiros (nem de qualquer outra terra marinhoa), razão porque esta será a primeira referência ao povoado, então com a designação escrita de «Veeyros».

Naquela época o rio Vouga desaguava junto de Veiros e da Murtosa, situando-se por isso as duas localidades em local estratégico, para quem subia e descia o rio.

Só em 1274 voltamos a encontrar um pergaminho veirense[4]. Dele existem várias cópias, estando uma delas entre os manuscritos do Mosteiro de Arouca no Arquivo da Universidade de Coimbra. Do respectivo volume, que tem mais informação importante, transcrevemos a:

«Carta de foro epovoação q fes a Abbª D. Maior Martins das herdades q chamão Celeiró, Ninho de Aguia, Cavalo, e Faayga Como partiaõ pella Vea dagoa do Rio de Antoam dahi aos mancões da Pouoa de Sarcagens, dahi ao Caminho q vem da Igreja de Santhiago de Bidoido pª Veiros dahi ao Rego das Alagoas e vai entrar no dito Rio Com obrigação de pagarem o 5.º de todos os frutos; e os mais direitos como pagavão os de Veiros e quaisquer pescadores de cada barca hum Cambo de peixe, né do Mayor nem do may pequeno __________ nº 5º»[5].

Em suma, a abadessa do Mosteiro de Arouca D. Mor Martins dividiu algumas terras de Antuã, sitas na actual freguesia de Veiros, pagando os povoadores um foro igual ao que já pagavam os moradores de Veiros. A propósito do caminho que aqui vem mencionado[6], numa lista de propriedades do Mosteiro de Arouca em Estarreja, datada de 1695, aparece uma «estrada que vai de Bedoido para a Caneira»[7].

Feitas as inquirições de 1334 nas terras de Antuã[8], nelas se encontram testemunhas de Veiros. E numa lista de casais e herdades, da época em que foi abadessa do Mosteiro de Arouca D. Guiomar (1346-1357)[9], mencionam-se os reguengos de Veeiros e Póvoa. Já no ano de 1366 um veirense explorava em sociedade uma marinha de sal denominada de Boorsa[10], na terra de Avanca.

Os moradores de Veiros são dados como isentos do pagamento de lutuosa no Foral de Antuã (1519)[11], o que foi justificado por antigos privilégios: «É quanto A gayoza Contheuda nos prazos antigos deque se paga huma porca ou huma ouelha ou cabra decraramos que a paga ou escolha della sera no pagador quoal dellas elleante quizer posto que athe qui doutra maneira se pagase e adita gajoza nem Lutoza Se naõ no Lugar de Veiros do dito comselho pella antigua liberdade, priuilegio». Veiros tinha por essa altura (1527)[12] cerca de 34 vizinhos, correspondendo a 136 habitantes.

No séc. XVI tornam-se mais vastas as informações que permitem uma melhor descrição da localidade. Em 1528 arrolava-se «hum pedaço de monte de malpica»[13], e em 1547 fizeram-se aforamentos nos lugares de Cavalo e Cabeças[14]. O lugar das Cabeças encontra-se antes, num curioso contrato de quatro folhas, realizado em 18 de Outubro de 1538[15]. De acordo com esse contrato, Bastião Antão e Antónia Alvares, casal morador em Veiros, e Mateus Alvares e Margarida Peres, casal morador nas Cabeças de Veiros, todos herdeiros de João Alvares, das Cabeças de Veiros, fizeram composição amigável com o Mosteiro de Arouca, sobre o Casal das Cabeças. Este tinha a renda anual de 11 alqueires de pão, 5 de centeio e 6 de milho. Tomaram-se ainda disposições relativas aos outros herdeiros.

Os cereais colhidos na freguesia não precisavam de sair da mesma para serem moídos, pois são antigos os moinhos ali existentes. Em 1528 havia um «Casal que foy de Pedro Annes, de Veyros eomoinho de Rego(?)»[16], em 1545 mencionava-se um moinho em Veiros[17] e em 1628 existia «hua lagoa e servia de agoa pera moinhos»[18]. A ribeira de Veiros vem a ser a única do concelho de Antuã com direito a ser aparecer nas posturas camarárias de 1645[19].

Nesta época Veiros iniciava vida paroquial autónoma como curato, na dependência da autoridade da Matriz de Santiago de Beduído. Miguel de OLIVEIRA apontou o ano de 1604 como sendo o do início da construção da igreja[20], embora sem cotar as suas fontes. No entanto, parece que muito antes se vislumbravam sinais de certa autonomia, conforme se verifica no Censual de D. Frei Baltasar Limpo, ou Censual da Mitra do Porto, datado de 1542. O nome de Veiros que ali se lê está escrito em letra diferente da linha que lhe é anterior. Teria então sido acrescentado posteriormente, mas não muito, pois não haverio necessidade de o escrever num livro que já estivesse fora de uso. O texto é este:

«Item tem hûa erepta . S . mª da murtosa . q por visitação se mandou fazer
e outra em Veiros»[21] (esta segunda linha está escrita com letra diferente)


In A Terra Marinhoa na Idade Média, Junta de Freguesia de Veiros, 2010, pp. 34-39



[1] V. Tabela 1.
[2] Os nomes de outras freguesias encontram-se perdidos no meio de diferentes localidades, em relatos que não lhes dizem exclusivamente respeito.
[3] Versão em português actual realizada com a ajuda do Pe. Manuel Cirne e do Dr. Luís Seabra Lopes, em 2005 e 2006. O original encontra-se no ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 7, m. 1, n. 2A, e vem mencionado no AUC, III-1.ºD-14-1-16, fls. 141v-142 (este volume é um índice dos bens do Mosteiro de Arouca em Estarreja). O original foi publicado por Rui de AZEVEDO, Avelino Jesus da COSTA e Marcelino Rodrigues PEREIRA, “Documentos de D. Sancho I (1174 – 1211)”, vol. 1, 1979, doc. 192, p. 295. Daqui teve dele conhecimento Maria Helena da CRUZ COELHO, que citou-o em “O Mosteiro de Arouca: do século X ao século XIII”, 1988, p. 342, doc. 202, e não o havia incluído na primeira versão dactilografada deste estudo. Só em 2005 o primeiro documento de Veiros veio a ser de facto conhecido localmente, por via de um artigo na imprensa local de Marco PEREIRA, intitulado “Referido em 1210 e 1250 – Veiros foi concelho medieval”, O Jornal de Estarreja, n.º 4281, 14.1.2005, p. 12; e n.º 4282, de 21.1.2005, p. 12. Em 2008 voltou a transcrever o texto Delfim BISMARCK FERREIRA, no artigo “Estarreja na Idade Média”, Terras de Antuã, II, 2008, pp. 17-40. Para a compreensão de alguns conceitos utilizados em 1210/1250, designadamente no que toca a pesos e medidas, sugere-se a consulta de Miguel de OLIVEIRA, “Inquirições de D. Afonso III…”, Lusitânia Sacra, 1964/5, tomo VII, pp. 95-133 e dos estudos do Dr. Luís Seabra Lopes sobre metrologia histórica.
[4] Em artigo intitulado “Origens da Freguesia de Veiros”, O Jornal de Estarreja, n.º 3178, 10.12.1964, pp. 1-2, Miguel de OLIVEIRA faz uso de outra cópia do diploma de 1274, obtida num Nobiliário da Casa do Mato – Avanca, e diz ver aqui as primeiras referências a Veiros. Assim se conclui que o autor não só não conhecia a existência do pergaminho de 1210/1250, nem nenhuma outra cópia do de 1274 para além da do Nobiliário de Avanca, o que aliás se verifica ainda em “Ovar na Idade Média”, pp. 74-75, onde o autor transcreve o texto por si conhecido. Como a sua versão estava incompleta e não datada, Miguel de OLIVEIRA procurou localizá-la temporalmente, atribuindo a sua elaboração aos anos de 1279-1281, pois se alude à alma de D. Afonso III mas este só morreu em 1279. Domingos MOREIRA, no “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, 2.ª Série, vol. 7/8, 1989/90, p. 98, mencionou uma outra cópia do ANTT do que, pela citação e data, parece ser o mesmo texto, mas com cota incompleta; sem se aperceber que é o mesmo documento, faz ref. a Miguel de OLIVEIRA, “Ovar na Idade Média”, p. 74.
[5] AUC, III-1.ºD-14-1-16, fl. 1v. Publicado primeiro por Marco PEREIRA, “Certidão de Baptismo da Murtosa – Ano de 1286”, O Concelho da Murtosa, n.º 2126, 31.1.2008, p. 17. Transcreve-se no apêndice documental do presente volume a versão que se encontra em 4 páginas, sem numeração, de outro volume com a cota AUC, III-1.ºD-14-2-11.
[6] O caminho de 1274, que delimita parte do aforamento colectivo, corresponderia aproximadamente à actual estrada do Molarinho. Note-se que é incluído o actual lugar do Cavalo.
[7] AUC, III-1.ºD-13-5-21, fl. 33.
[8] ANTT, Mosteiro de Arouca, vol. 106 (traslado das inquirições de 1334; no próprio doc. tem a data de 1332).
[9] Cit. Miguel de OLIVEIRA, “Ovar na Idade Média”, p. 184 (cópia do ANTT, sem cota).
[10] ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 7, m. 1, n. 19.
[11] “Arquivo do Distrito de Aveiro”, X, 1944, pp. 22-28; alude a este privilégio LOPES PEREIRA, “Murtosa Terra Nossa”, pp. 35-36.
[12] “Arquivo Histórico Português”, vol. VI, 1908, pp. 275.
[13] AUC, III-1.ºD-13-4-11, fl. 264v.
[14] AUC, III-1.ºD-13-4-11, fl. 273.
[15] ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 7, m. 1, n. 17.
[16] AUC, III-1.ºD-13-4-11, fl. 264v.
[17] AUC, III-1.ºD-13-4-11, fl. 269v.
[18] AUC, III-1.ºD-13-4-11, fls. 279 e 279v.
[19] Publicadas por Eduardo COSTA sob o título “Estarreja no Passado”, Aveiro e o Seu Distrito, n.º 8, 1969, p. 23; e “Estarreja no Passado – Antigas posturas da Câmara de Estarreja”, O Jornal de Estarreja, n.º 3317, 25.9.1970, p. 1.
[20] “Origens da Freguesia de Veiros”, O Jornal de Estarreja, n.º 3178, 10.12.1964, pp. 1-2; e “Ovar na Idade Média”, p. 189; faz referência a este volume Domingos MOREIRA , no “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, 2.ª Série, vol. 7/8, 1989/90, p 98; e foi em boa medida com base naquele primeiro artigo publicado em “O Jornal de Estarreja”, que José TAVARES apresentou os dados publicados nas “Notas Marinhoas”, II, 1972, pp. 10-14.
[21] ADP, Censual da Mitra, fl. 6; publicado por Cândido Augusto Dias dos SANTOS, “O Censual da Mitra do Porto…”, Câmara Municipal do Porto, 1973, p. 197; esta publicação é mencionada por Domingos MOREIRA, no “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, 2.ª Série, vol. 7/8, 1989/90, p 98; a informação entrou no conhecimento local por via do artigo de Marco PEREIRA  “Novos subsídios para a história da capela de Santo Amaro”, Terras de Antuã, II, 2008, pp. 275-278.

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