domingo, 3 de julho de 2011

A Terra Marinhoa na Idade Média - GELFA (região onde se insere a actual freguesia da Torreira)

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A Torreira insere-se num cordão litoral que se foi formando ao longo de séculos, nos domínios de Ovar. A este vasto território em formação e continuo avanço para o sul chamava-se de Gelfa, e encontra-se documentado desde 1283 [198]. Foi nesse ano que D. Dinis aforou a um particular a Gelfa, onde havia coelhos e pastagem de gados.
 
Em 1354 [199] e 1355 [200] volta a encontrar-se a Gelfa. No primeiro ano vem mencionada como sita entre a foz do Vouga e o Furadouro, e ali se criavam éguas e poldras. Existiam então os lugares de Reelva, Estromeira, Porrida, Vimas, e outros entre a foz do Vouga e o Furadoiro (sic). Tudo pertencia ao Mosteiro de Grijó. Do segundo ano depreende-se ter sido a criação de gado muito afectada pela peste de 1348, o que ocasionou atrasos no pagamento dos foros.
 
Para além do Mosteiro de Grijó, também o de Arouca procurou tirar proventos daquelas areias, desconhecendo-se ao certo quais os fundamentos para o fazer. A verdade é que Vasco Esteves, procurador do Mosteiro de Arouca, e João Martins, abade da igreja de S. Cristóvão de Cabanões, fizeram nesta última localidade, em 30 de Abril de 1363, um acordo sobre uma demanda posta na Sé do Porto, pelas dízimas dos gados que iam pascer à freguesia da igreja de S. Cristóvão de Cabanões [201]. Nesse acordo comprometem-se as partes a aceitar as decisões de João Palmeiro (ou Pinheiro), Deão da Sé de Coimbra, na contenda que as duas partes tinham. O mesmo Deão da Sé de Coimbra proferiu sentença no Porto, a 4 de Dezembro de 1364 [202], determinando que as duas partes dividissem em partes iguais a dízima do gado, que pastasse e nascesse na Jelfa (sic). Estava resolvido o litígio sobre direitos eclesiásticos.
 
Nos anos de 1365 e 1366 voltamos saber do Mosteiro de Grijó [203] e seus direitos temporais, pelo “Livro das Campainhas”, onde se escreveu: «Paga ao moordomo d’El Rey en Cabanoes de montado da Jelffa tres libras».
 
Por alturas do Foral de Ovar (1514) a ocupação dada à Gelfa mantém-se, pois diz-se existir ali gado vacum e miúdo. No que respeita aos montados consta neste Foral que «nam se levarão montados aos gados dos vizinhos e comarcaãos porque estam em vezinhamça huuns com outros livremente salvo os montados da gelffa que sam em solido nossos.
 
Dos quaaes levarão este direito se primeiro senam fizer avença. a saber. Por cabeça de gaado vacuum dous Reaaes e por myudo por cabeça meo Reall sem mais se levar outro direito do dicto montado nem gado. E os da terra montarão livremente na dicta gelffa» [204].
 
Para que na Gelfa fosse possível a criação de gado, necessário seria que esta tivesse largura razoável e mais ou menos consolidada entre a ria e o mar, algum comprimento para sul, vegetação e água doce para o sustento dos animais. Quanto à água deveriam recorrer a poços como aquele que, nos anos 70 do século XX, o mar colocou a descoberto no areal frente ao centro urbano da Torreira. Teria pois estado o mar noutra época mais recuado. Poços como este e o que chegou a existir no meio do actual Largo da Varina necessáriamente serviram as companhas de pesca, que desde finais do séc. XVII começaram a laborar sazonalmente na Torreira.

Fig. 16. Poço colocado a descoberto pelo mar em 1974-1975, no areal da Torreira
(http://almagrande-ria.blogspot.com – post de 2008.8.13 – foto de Sérgio Paulo Silva).

Na segunda metade do século XVII fecha quase completamente, e totalmente no início do séc. XVIII, a comunicação da ria com o mar, o que ocasionou grande baixa na população de Aveiro. Foi então que no norte da ria iniciou-se a pesca da xávega no mar, durante os meses quentes do ano. Na primeira metade do séc. XVIII edificou-se a capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, mais tarde dita de S. Paio. Informa a Memória Paroquial de Ovar de 1758 [205] que o lugar da Torreira só tinha um vizinho, um único habitante permanente, o ermitão que guardava os bens dos pescadores no inverno, época em que a praia ficava deserta.
 
No meado do séc. XIX já esta praia acolhia algum turismo. Foi nessa altura desanexada do concelho de Ovar para passar a pertencer ao de Estarreja. E do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX chegam-nos relatos de caçadas por entre os vastos areais.

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[198]. ANTT, Chancelaria de D. Dinis, Lv. I, fl. 64. Transcrito por Miguel de OLIVEIRA, em “Ovar na Idade Média”, p. 77, que cita este doc. na p. 113 e outros posteriores na p. 114. Referido ainda por LOPES PEREIRA, em “Murtosa Gente Nossa”, pp. 64-65.
[199]. ANTT, Tombo do Mosteiro de Grijó, III, fls. 94v-96; publicado por Miguel de OLIVEIRA, “Ovar na Idade Média”, pp. 78-80, com mera citação na p. 169.
[200]. ANTT, Tombo do Mosteiro de Grijó, I, fls. 242-245; cf. Miguel de OLIVEIRA, “Ovar na Idade Média”, pp. 77 e 121.
[201]. ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 3, m. 5, n. 50. Deste pergaminho, escrito por Francisco Anes, tabelião de Cabanões, há um traslado na pública-forma de 17 de Dezembro de 1364, realizado por Antoninho Domingues, tabelião do Porto. O segundo pergaminho tem a mesma cota ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 3, m. 5, n. 50.
[202]. ANTT, Mosteiro de Arouca, g. 5, m. 12, n. 18. Pergaminho do tabelião Antoninho Dominges.
[203]. Luís Carlos AMARAL informa de duas fontes do priorado de D. Afonso Esteves: o “Livro das Campainhas”, de 1365, e o “Tombo do Prior D. Afonso Esteves”, de 1366. Ref. no apêndice B, p. s/n, ao montado da Jelffa (sic), do qual se paga 3 libras ao mordomo do Rei em Cabanões.
[204]. Luís Fernando de Carvalho DIAS, “Forais Manuelinos…”, p. 249; Cf. Miguel de OLIVEIRA, “Ovar na Idade Média”, p. 167, e que acrescenta nas pp. 140-141 a existência de lezírias e pauis, de Ovar à foz de Aveiro, em 1525, pertencentes ao Cabido da Sé do Porto, aludindo ao Lv. 10 dos originais, fls. 13 e 14.
[205]. “Arquivo do Distrito de Aveiro”, XXXIV, p. 205.


In "A Terra Marinhoa na Idade Média", Junta de Freguesia de Veiros, 2010, pp.50-53
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