domingo, 14 de novembro de 2010

Da cobertura de colmo à telha de Fontela

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CASAS COLMADAS

As habitações populares representadas em iluminuras medievais portuguesas são cobertas de colmo. E o cidadão comum guarda a mesma imagem do cinema e de outras fontes. Também os documentos locais confirmam essa característica.

Nas sentenças das inquirições de 1288, no julgado da Feira, refere-se «huma alagoa que he comtra o mar he freguesia desmoriz e de cortegaça. he prouado que he deuassa e que os homeens delrrey e os outros da terra vinham hy colher a carrega e o junco e a madeira pera cobrir as casas» [1]. Numa variante da mesma inquirição escreveu-se que «en huum loguar que he dele da freegesia de Esmoriz e dele da freegesia de Corteguaça, contra o mar, a huma laguoa que era deuasso e a que ujam os homens del Rey e os outros da terra colher o coreçil e a carregua pera cobrir as casas e o junco e a madeyra» [2].

Cabana de palha para arrecadação de cebolas,
nas Quintas da Torreira, cerca de 1970.
MATOS, Elisabete Almeida (aluna de Filologia Românica),
“Relatório do Inquérito Linguístico,
realizado no lugar de
Quintas da Torreira ou Quintas do Sul” (n.º 1015),
Coimbra, 1971, foto 16.

Chamava-se Estromeira um dos lugares existentes na Gelfa em 1354 [3], portanto dentro ou próximo da actual freguesia da Torreira. Por estrume entendia-se uma erva que nascia na costa do mar, e servia para cobrir as casas. Era o mesmo que estorno, e usava-se para semelhante efeito o corocil, o junco e a cárrega, que cresciam na barrinha de Esmoriz [4], como acima se disse. Da cárrega teve origem o topónimo Carregal, ocorrido em Ovar e Salreu.

Os moradores da Terra de Santa Maria e outras queixaram-se ao rei D. Manuel, em 1501, de certos abusos do Conde da Feira, incluindo que este «levava de cada huua pessoa, que apanhava o estrume pera cobrir suas casas, o qual estrume era hua erva, que nacia na Cósta do Maar, huu alqueire de trigo» [5]. Talvez inspirado nesta informação, escreveu um autor local que as habitações dos primeiros murtoseiros seriam «todas colmadas pelo estrume apanhado nos ervaçais das areias» [6].

Foto de barracão, sem data, existente num
album da Biblioteca Municipal da Murtosa.

FORNOS DE FONTELA

Num emprazamento do Mosteiro de Arouca datado de 1526 menciona-se a «metade do chão do forno de Fontella» [7]. Poucas décadas mais tarde, em 1594, faz-se menção ao Casal do Telhado (Avanca), onde existia «hum assento de casas de morada terreiras, telhadas, e colmadas…» [8].

A cobertura de colmo nas edificações haveria de ser comum até muito recentemente, como comprovam as duas fotografias aqui juntas e se conhece dos estudos de Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano. Porém observa-se no longínquo século XVI a existência de algumas casas telhadas, assim como uma indústria local capaz de fornecer a telha então utilizada. A notícia de 1526 é a primeira de um estabelecimento industrial no concelho de Estarreja, com avanço de séculos em relação a outras actividades. Com efeito não se encontram quaisquer informações sobre indústria no concelho de Estarreja, nem na Relação das Fábricas de 1788, nem no Mapa das Fábricas de 1814, e mais fontes da primeira metade do século XIX. Talvez devido à pequena importância dos estabelecimentos que existissem.

Nas informações para a estatística industrial do distrito de Aveiro, de 1865, alude-se a doze fabricantes de telha e tijolo em Avanca, distribuídos por três fornos situados na mesma freguesia e únicos no concelho. Destes fornos de telha e tijolo se explana na mesma estatística, de 1865, que «Empregam-se no fabrico da telha e tijolo 460:000 kilogrammas de barro, procedente de Fontella, logar proximo do sitio onde se acham estabelecidos os fórnos; custa cada kilogramma de barro 0,17 réis. Fabricam-se annualmente 415 milheiros de telha e 218 milheiros de tijolo, vendendo-se este a 2$950 réis o milheiro, e aquella a 2$980 réis. Consomem-se nas coseduras 1:460 steres de ramada de pinheiro e lenhas miudas, a 300 réis o stere. Empregam-se no fabrico durante o anno 12 socios e suas familias, que não ganham salario».

A actividade industrial de Fontela atingia pois dimensão significativa, a ponto dela se escrever em 1875 que na aludida localidade «se fabrica muita e a melhor telha e tijolo de Portugal. A argilla (barro) extrahe-se debaixo da areia da costa, junto á capella de Nossa Senhora de Entráguas» [9]. Questionado em 1885 sobre a indústria do concelho o escrivão da fazenda de Estarreja, José Luiz Ferreira Vidal Junior, manteve que «Este concelho é no seu todo agricola, havendo apenas n’elle uns fornos de telha que são hoje o mesmo que eram ha vinte annos» [10].

Nada mais se acrescenta na viragem para o século XX, senão a continuidade da existência deste género de indústria [11], de cuja telha ainda se publicitava a venda em 1908 [12]. Poucos anos antes (1904) anunciava-se pitorescamente que «No dia 4 de Setembro festeja-se na sua pequenina ermida, junto aos fornos de telha, em Fontela, da freguesia de Avanca, a Nossa Senhora da Saúde, havendo arraial de tarde e duas músicas» [13].

É sem novidade que se arrolam 3 fornos em 1905, indústria familar com 9 trabalhadores, mais 6 na altura de enfornar e desenfornar, entre homens e mulheres. Utilizavam-se formas de madeira para os tijolos e constava que nesta época o barro utilizado extraía-se de perto dos fornos. O método para cozer a telha era o seguinte: «Os fornos tem dois repartimentos, o inferior é a fornalha e o superior a camara de cozedura, differindo dos anteriormente descritos em não ser coberta a camara de cozedura; quando tratam de cozer uma fornalha de telha, depois do enfornamento, cobrem a telha com leiva e bocados de telha que guardam já para esse effeito» [14].

Emprazamento de metade do chão do forno de Fontela, em 1526.
AUC, III-1.ªD-13- 4-11, fl. 263v.

Subsiste uma última notícia, impressa em 1912, de dois fornos de telha em Fontela com uma produção anual de 1.012$500, nos quais se empregavam quatro homens e quatro mulheres, todos maiores [15]. Completa essa notícia mais o seguinte: «Na freguesia de Avanca e no lugar de Fontela contam-se hoje dois fornos para cozer telha e tejolo ordinário, que consomem barro explorado em locais próximos.

O pessoal empregado em cada um dêles é o dono e um auxiliar que se ocupa, especialmente, do enfornamento e na exploração do barro e seu amassamento; duas mulheres procedem ao fabrico e condução da telha ao secadouro, passando esta última a mão molhada em uma aguada em que entra barro procedente de Ílhavo e Aveiro para que a futura telha fique com a côr vermelha, doutro modo ficaria branca depois da cozedura.

Em cada um dêstes fornos fabrica-se durante o período de trabalho 4 ou 5 fornadas de 20:000 telhas e 5 mil tejolos ou, em média, 90:000 telhas e 22:500 tejolos, ou 112:500 peças, que, a 4$500 réis cada milheiro, valem 506$250 réis.

As despesas de cada um dêstes industriais podem calcular-se em 313$200 réis, sendo 9$900 réis de jornais, 150$000 réis de barro e sua condução, 60$000 réis de lenha e 4$200 réis de contribuição. O rendimento líquido será de 193$050 réis para sustento de cada uma das famílias que exercem nos meses de Junho a Outubro esta indústria» [16].

Os fornos de telha de Fontela pouco mais terão durado, finalizando a sua actividade ainda no início do século XX [17]. Situavam-se aproximadamente no local onde veio a instalar-se a fábrica de lacticínios Nunes & Rodrigues, ou Lacticínia, ultimamente designada por Laclé. Não foi possível colher entre os mais velhos, vivos nos anos 20, quem se lembrasse de ver em actividade os fornos de Fontela, mas continua a falar-se da sua característica telha redonda, de meia cana.


[1]. SARAIVA, José da Cunha, “Inquirições de D. Dinis”, Arquivo Histórico de Portugal, vol. II, p. 122.
[2]. OLIVEIRA, Miguel de, “Ovar na Idade Média”, 1967, pp. 103-104.
[3]. PEREIRA, Marco, “A Terra Marinhoa na Idade Média”, 2010, p. 51.
[4]. OLIVEIRA, Miguel de, “Ovar na Idade Média”, 1967, p. 114.
[5]. OLIVEIRA, Miguel de, “Ovar na Idade Média”, 1967, p. 154; LOPES PEREIRA, “Murtosa Gente Nossa”, 3.ª ed., 1995, p. 70.
[6]. LOPES PEREIRA, “Murtosa Terra Nossa”, 2.ª ed., 1995, p. 41.
[7]. AUC, III-1.ªD-13- 4-11, fl. 263v.
[8]. ADP, Tombo da Mesa Abacial, Convento de Paço de Sousa (Penafiel), vol. 4, fl. 599.
[9]. PINHO LEAL, “Portugal Antigo e Moderno”, vol. 6, 1875, s. v. Pardilhó, p. 478.
[10]. “Commissão Parlamentar para o Estudo da Emigração Portugueza – 1885 – Documentos apresentados à Camara dos Senhores Deputados…”, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, p. 139.
[11]. Anuário Comercial de Portugal, 1897, p. 995; Anuário Comercial de Portugal, 1901, p. 1121.
[12]. O Povo da Murtosa, 142, 9.4.1908, p. 9.
[13]. O Concelho de Estarreja, n.º 151, 27.8.1904, p. 3.
[14]. “Estudo sobre o estado actual da Industria Ceramica…”, Ministerio das Obras Publicas, Commercio e Industria, Lisboa, Imprensa Nacional, 1905, p. 22. Foram-nos fornecidas pelo Dr. Delfim Bismarck Ferreira cópias desta publicação, pp. 21-23.
[15]. CABIDO, Aníbal Gomes Ferreira, “Corografia Industrial do Concelho de Estarreja”, Boletim do Trabalho Industrial, n.º 65, Lisboa, Imprensa Nacional, 1912, pp. 10-11.
[16]. Idem, pp. 6-7.
[17]. Assim o escreveram Carlos CARDOSO, “Subsídios para uma Monografia Histórica e Descritiva da Freguesia de Avanca”, 2000 (1.ª ed. de 1961), p. 167, e na revista dos Populanca “d’A Vanca”, n.º 2, 1996, p. 20. Ambos confirmam a sua localização.

In Da cobertura de colmo à telha de Fontela”, Terras de Antuã, Câmara Municipal de Estarreja, IV, 2010, pp. 111-114
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